impurezas, hibridismo e relação com as técnicas “puras”

(atualizado em 2016, 2018)

Desde pelo menos o surgimento do que se passou a chamar de pós-modernidade (ver, por exemplo, Harvey 2011), vem-se falando da sobreposição das diversas linguagens artísticas – os modelos de criação, crítica e apoio às artes que se dividem em “caixinhas” já não parecem mais funcionar tão bem. Ocupar um lugar de híbrido ou interlinguagem significa frequentemente ser colocado na posição de “o outro”. Sempre que se realiza uma partitura de movimentos utilizando um suporte aéreo e as técnicas de suspensão oriundas da tradição circense, o resultado será um “trabalho de circo”? Ou: sempre que se abre mão dos recursos dramatúrgicos típicos do circo (que envolvem o risco, a virtuose, a força, o excesso de sensualidade) para desenvolver uma coreografia aérea, o resultado se configura como um “trabalho de dança”? O que separa essas duas zonas de criação? O que as une? O que o nosso trabalho carrega de cada uma dessas tradições?

A pesquisa cênica que venho realizando tanto no Núcleo Desastre como em minhas pesquisas individuais parte de tipos de narrativa e caminhos de construção de cenas que são mais típicas da dança contemporânea, privilegiando, por exemplo, a pesquisa de movimento sobre a técnica pura; ou o tema (sobre o qual se quer falar) sobre a virtuose. Ao mesmo tempo, para utilizar o corpo suspenso, trazemos do circo, inevitavelmente, as técnicas movimentação aéreas, assim como o preparo físico específico. Essas técnicas são imprescindíveis para que se possa explorar as possibilidades de movimento fora do chão. Mas muitas vezes abro mão, todavia, da técnica como um fim – ou da técnica como recurso expressivo –, o que configura a estética do virtuosismo ou de risco que se observa no circo, mesmo em algumas de suas vertentes contemporâneas.

Os escritos de Klauss Vianna sobre a dança clássica (Vianna, 2005 [1990]) proprocionam ótimos caminhos de reflexão, já que servem também para pensar a relação com a técnica no circo. Para ele, “a preocupação excessiva com a técnica é prejudicial”, e se reflete num processo de criação (ou execução) de movimentos muito pautado pela forma. Não à toa o ballet clássico, assim como a tradição circense, têm na repetição da forma um de seus caminhos mais típicos de aprendizado: o aluno aprende “truques”, ou “passos”, sempre a partir de um ideal de “execução correta”. O movimento, nesse sentido, corre o risco de ser reduzido ao seu aspecto formal, o que costuma comprometer também a sua capacidade de comunicação. Rudolf Laban formula algo parecido:

“A maioria das técnicas […] têm em comum uma seleção mais ou menos limitada e concisa de exercícios fundamentais para o domínio corporal. Isto faz com que seja possível alcançar um alto grau de destreza na forma particular de movimento. Muitas vezes, porém, ajustar uma ferramenta e acondicionar o instrumento assumem tanta importância que passam por cima da pesquisa do material de movimento, e o material adquirido é muito escasso” (Laban, 1990, p. 115, destaques nossos)
De outro lado, não se trata de rechaçar a técnica: o próprio Klauss Vianna pondera que a técnica [clássica] “não é só isso”, é também um caminho para organizar fisicamente as emoções e conhecer o corpo; desde que o bailarino a exercite com os sentidos alertas (e não pela repetição mecânica) (ibidem, p. 30). As propostas tanto de Vianna quanto de Laban nos abrem outros ângulos possíveis a partir dos quais se pode mobilizar a técnica, e nos permitem pensar em uma expressividade que é oriunda do próprio modo de funcionamento do corpo, dos próprios caminhos que o corpo encontra para executar “instruções corporais”, muito mais do que das formas finais (ver também Neves, 2007). Essa proposta interessa, acima de tudo, por dar mais liberdade para a expressão individual e para a singularidade dos corpos, ampliando, consequentemente, as possibilidades de criação.

Da área da dança, destaca-se ainda o trabalho de André Lepecki (2006), que questiona se a dança construída como linguagem artística (e principalmente o dispositivo da coreografia) não estaria submetendo o corpo a um determinado regime disciplinar característico da modernidade e reduzindo toda a possibilidade de presença do dançarino a serviço do movimento.

A balança entre técnica e expressividade, vale lembrar, é um dos problemas fundamentais da arte e é objeto de discussão de várias esferas de produção, incluindo as artes cênicas e também as visuais. Isso porque a representação de arte se construiu, no ocidente, como a esfera da subjetividade por excelência – na qual se valoriza, sobretudo, o gesto individual de cada artista; na qual a criação e o novo costumam ter mais valor do que a mera reprodução (ver Heinich, 2005 e Schaeffer, 2004, que apontam que a originalidade foi historicamente construída como uma noção normativa, central para a ideia de “eficiência” ou visibilidade das obras nos campos artísticos). A oposição entre a repetição/reprodução x criação/originalidade – que, como bem observa Schaeffer (2004), atualiza uma outra oposição clássica, entre imanência e transcendência –, constitui-se como parâmetro importante para a definição do que é arte e do que não é.

De qualquer forma, essa questão está longe de ser consensual na literatura sobre a produção artística. Há autores de diferentes áreas que apontam que o domínio nem sempre leva à repetição, que enxergam a técnica como imprescindível ou mesmo como “libertadora”. Vendramini (2003), tomando como objeto outro fazer artístico (a elaboração do texto dramatúrgico), argumenta que, num processo de criação artística, a técnica e a invenção/imaginação não são contraditórias ou mutuamente excludentes, e que a criatividade pode sair beneficiada quando a técnica está presente (para ele, o domínio técnico é mas libertador do que restritivo). O próprio Mário de Andrade, em aula proferida em 1938, refletiu sobre esse ponto, concluindo que a arte não se resume às subjetividades do gênio individual (a “solução individual”, ou o gesto do artista, poderíamos dizer), mas envolve também a imprescindível dimensão do “artesanato” (o domínio das técnicas, que é aprendido) e o conhecimento de técnicas históricas já consagradas (que ele define como “virtuosidade”) (Andrade, 2016 [1938]). E na literatura específica do circo, há também aqueles que defendem que a própria técnica ou a proeza podem ter uma função expressiva em si, e não necessariamente precisam estar a serviço de algo “maior” (Bouissac, 2010, por exemplo, entende que a destreza pode desencadear diretamente uma espécie de poética do sublime).

Todas essas questões, a meu ver, se fazem presentes no momento da criação de cenas e narrativas a partir da movimentação aérea: que aspectos privilegiar? De onde pode vir o recurso expressivo? Como abordar certos assuntos/temas com um corpo colocado fora do chão, algo que, por si só, já configura uma imagem bastante forte (pelas próprias representações que já desencadeiam no imaginário do público)? Como conseguir “descolar” a imagem do corpo suspenso de representações de virtuosismo ou de risco? Ou, como brincar com essas próprias representações, mas com algum distanciamento, e tendo como foco o processo de construção do movimento e não a forma?

Essas questões são sementes para um processo de investigação cênica a ser conduzido em grupo.

ANDRADE, Mário (2016 [1938]). “O artista e o artesão”. In: ANDRADE, Mário (2016 [1943]). O baile das quatro artes. São Paulo: Poeteiro Editor Digital

BOUISSAC, Paul (2010). Semiotics at the circus. Alemanha: De Gruyter Mouton.

HARVEY, David, 2011 [1989]. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.

HEINICH, Nathalie e SCHAEFFER, Jean-Marie (2004). Art, création, fiction. Entre sociologie et philosophie. Nimes: J.Chambon.

LABAN, Rudolf . Dança Educativa Moderna. Tradução de Lisa Ullman. São Paulo: Ícone, 1990.

LEPECKI, André. Exhausting dance: performance and the politics of movement. New York: Routledge, 2006.

NEVES, Neide (2007). “Um olhar para Klauss Vianna” in IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas.

VENDRAMINI, José Eduardo (2003). Sobre criação dramatúrgica e encenação. In Sala Preta, v. 3.

VIANNA, Klauss (2005) [1990].  A Dança. Em colaboração com Marco Antônio de Carvalho. São Paulo: Summus.

 

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